No encarte do disco Nelson Sargento - Versátil, Nei Lopes escreve: Afinal pra quê serve um “sambista de raiz”?
Leia na íntegra:
Nelson Sargento – Versátil sem perder a Raiz
Afinal pra quê serve um “sambista de raiz”?
Esta pergunta nós nos fizemos, num misto de tristeza e indignação, quando vimos o parceiro Wilson Moreira cair vítima de um derrame, cerca de onze anos atrás.
Naquele momento, a garotada, filha daquela rapaziada universitária que se extasiou com a modernidade afro de Clementina no Teatro Jovem e elevou o velho Zicartola à categoria de templo maior do samba carioca, começava a descobrir os finos petiscos de Cartola, Candeia e companhia. E, aí, nós, aporrinhados da vida, chamamos para nós mesmos a responsabilidade da resposta.
No nosso modesto entender – pensamos –, um sambista de verdade (“de raiz” é rótulo maroto) serve como ponte entre o ontem e o amanhã; como referencial e também como baluarte – no sentido de “suporte, apoio, sustentáculo” e também no de “fortaleza inexpugnável” contra as investidas destruidoras.
Agora – perguntávamos novamente, para logo depois voltarmos a responder – : quanto vale um sambista, nessa história?
Em termos de mercado, sabemos, por experiência própria, que vale muito pouco. Porque os assim chamados, principalmente os rotulados como “de raiz”, são sempre aqueles que, embora reverenciados e com boa entrada na tal da “mídia”, quase nunca são gravados pelos grandes vendedores de disco; quase sempre são convidados “especiais” só para cantar de graça ou receber o “simbólico”, o “da passagem”; e nunca, apesar das placas-de-prata e medalhas de mérito, são incluídos no contexto da milionária indústria cultural.
Mas acontece que, hoje, graças aos deuses e musas, o que de melhor se faz na música popular brasileira, incontestavelmente, está exatamente fora desse contexto aviltado e emburrecido. E este é, com toda a certeza, o caso de Nelson Sargento e deste seu CD “Versátil”.
Às vésperas de completar 84 anos de idade; 43 anos depois do inesquecível Rosa de Ouro; numa trajetória artística e literária que inclui telas, filmes e livros, Sargento põe a tropa em fila e apresenta suas armas, neste seu quinto CD individual. E essas armas são: composições com sua marca, parcerias geniais, arranjos eficientes, músicos de grande talento... E fidelidade absoluta à sua sina de artista moderno e corajoso.
O disco começa com um autêntico ivone-lara (substantivo incomum), pra malandro nenhum botar defeito. Pois "Nas asas da canção", embora Nelson sempre apareça, no “ocaso da vida”, na “mente cansada”, “emoldurando a fantasia”, é um ivone-lara legítimo, safra 1947. E dele vamos para o correto "Sinfonia imortal", parceria com Agenor de Oliveira, conhecido como intérprete e entusiasta da obra de Noel Rosa (o saudoso poeta da Vila), de ausência quase tão sentida, para nós, quanto a do nosso pranteado parceiro Maurício Tapajós, que assina, com Sargento, o "Verão no Rosto". Nessa faixa, a seqüência harmônica do trecho “sorriso infantil” parece Maurício dizendo “estou aqui!”. E daí, passamos, tirando o chapéu, por um Cartola ("Ciúme doentio"), para chegar à primeira surpresa do disco.
Mas como?! Uma valsa? Sem letra? E solada ao piano pelo Wagner Tiso?
Calma, prezado leitor-ouvinte! "Rosa Maria, flor mulher" é apenas a primeira surpresa deste CD “Versátil”. Porque, a faixa seguinte, "Bálsamo"... é um bolero! Com direito a acordeom e tudo! No melhor estilo anos 50. E a outra é um fox ("Primeiro de abril"), com a guitarra elétrica harmonizando, tipo Oscar Moore ou Billy Mackel; e na qual nosso Sargento incorpora Custódio Mesquita na melodia e Lamartine Babo na letra lírico-brincalhona.
Mas a versatilidade do artista é claro que acaba (ou continua) em samba. Com o protesto partideiro do parceiro Agenor em "Acabou meu sossego"; com outra reclamação, desta vez mais bronqueada, quando o letrista acusa a mentirosa de “tapar o sol brilhante com a peneira da ilusão” ("Parceiro da ilusão"); até que chegamos ao “samba do Marreta”.
Compositor dos primeiros tempos da verde-e-rosa, Marreta, integrante da Galeria de Honra da ala de compositores mangueirenses, ao que consta, jamais ganhou um samba-enredo e é muito pouco conhecido. E é Nelson Sargento que, agora, o apresenta ao grande público, nesta parceria ("Só eu sei") tão pequenininha quanto melodiosa e contagiante. Um verdadeiro samba-de-terreiro dos bons tempos! Tão forte quanto a faixa seguinte, "Pobre milionária", é ilustrativa da influência de Cartola nas obra do nosso grande artista.
Sobre o clássico "Falso amor sincero" já se disse tudo. Mas aí vêm, de novo, Sargento e o Oliveira com uma marcha-rancho “daquelas” – que não nega sua raça nem no arranjo. Versatilidade! E, então, o excelente "Pranto ardente", nos faz ver Os Cinco Crioulos (inclusive com os saudosos Anescar e Jair) metendo bronca, de terno branco, no palco do Teatro Jovem; e nós também. Mas eis que chega o "Século do samba", concorrente ao enredo da Manga em 1999, nos fazendo coçar a cabeça: “é melhor este samba aqui, Seu Nelson; pois lá, ia virar outra coisa!”. É nessa que a letra de Ídolos e astros dá o recado final: “Os grandes artistas, como Nelson Sargento, sempre viverão na memória daqueles que têm respeito e consideração”.
Pois é isto! Ponte entre o ontem e o amanhã, este CD mostra, de fato, a maestria e a versatilidade de Nelson Sargento, valioso e valoroso, referencial e baluarte. Fortaleza inexpugnável do samba, ao lado de Evonete (seu “bálsamo”), ele incursiona também por outras “praias” do seu tempo. E, assim, sob a batuta desse extraordinário Paulão Sete Cordas e contando com um batalhão de grandes músicos e amigos, ele, versátil sem perder a raiz, põe a tropa na rua e toma suas providências.
É para isto que serve um sambista de verdade!
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